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O consagrado escritor moçambicano Mia Couto esteve no Brasil no começo de setembro de 2014 para ministrar uma aula magna com o tema Guardar Memórias, Contar Histórias e Semear o Futuro, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre.
O vencedor do Prémio Camões de 2013 concedeu uma entrevista ao jornal Zero Hora em que declarou que seus contos são “um espaço de resistência”. “São os africanos que têm que contar a sua história, e ter a sua própria voz, como a voz que importa e que é respeitada. Em lugar de pedir aos outros, a África tem que fazer isso a partir de dentro”, diz o escritor que é sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras.
“A militância existe em toda língua”, diz Mia Couto, “como afirmação de sua própria interioridade. […] E fazer isso em português, num mundo em que a língua inglesa é a língua global, é uma afirmação de diversidade quase subversiva.”
Abaixo, alguns trechos da entrevista concedida a Letícia Duarte e publicada na edição do Zero Hora, de 7 de setembro de 2014 – aliás, data emblemática para os dois países por ser o mesmo dia em que se comemoram a independência do Brasil e o Acordo de Lusaca, que consolidou a independência de Moçambique.
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::: O senhor vem de um dos dez países mais pobres do mundo, e essa temática dos desvalidos é marcante em sua obra. Ao mesmo tempo, a esperança também é recorrente. Mesmo em Terra Sonâmbula [romance publicado em 1992], o seu livro que retrata o contexto da guerra civil em Moçambique, isso aparece. Na obra, o senhor escreve que o que faz andar a estrada é o sonho. Como cultivar a esperança em meio à aspereza da realidade? :::
Mia Couto – De uma forma coletiva, temos dificuldade em encontrar um caminho. No Brasil, em Moçambique, no mundo, nós nos sentimos um pouco perdidos, porque as forças que hoje comandam o mundo são pouco visíveis, não têm um rosto concreto. Como operar a mudança sem entender é muito complicado. Mas a resposta começa a partir de cada um. Não podemos abdicar desse outro modo de viver em que os outros são importantes, e é preciso perceber que esse sentido coletivo, essa negação do mundo sem lugar, de um mundo sem história, tem de ser feita em cada um de nós. Não só contar e receber histórias, mas vivermos uma história. E essa história tem que ser produzida por nós, não pode ser consumida. Não pode ser algo como a gente vai ao cinema, lê um livro, e assimilamos as histórias dos outros, que os outros fazem para nós. Temos de ser produtores de histórias. Assim conservamos o papel de sujeitos.
::: O senhor critica a visão arrogante do Ocidente, que imagina ter a receita para salvar o continente africano, sem considerar toda a complexidade cultural. Qual o primeiro passo para que os ocidentais possam ter uma visão mais realista do continente africano? :::
MC – É preciso dizer que essa arrogância não é só da cultura ocidental. Todas as culturas que se querem hegemónicas têm a mesma arrogância. Mas, uma vez que essa cultura ocidental se tornou tão hegemónica, não se pode pedir a essa outra cultura que tenha atenção. É preciso impor a partir de dentro. São os africanos que têm que contar a sua história, e ter a sua própria voz, como a voz que importa e que é respeitada. Em lugar de pedir aos outros, a África tem que fazer isso a partir de dentro. Isso já começou. Não se pode esquecer que um dos únicos políticos do mundo que devolveu esperança ao mundo e resgatou a nobreza de fazer política foi um africano: Nelson Mandela. É um grande orgulho para a África ter esse caso singular no mundo, de alguém que fez política para servir, no sentido de sua abdicação pessoal.
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::: O senhor se define como uma criatura de fronteira — que é biólogo e escritor, tem origem europeia, mas é africano, trabalha com a ciência e a arte. Num mundo tão intolerante como o nosso, essa visitação a diferentes realidades é cada vez mais rara. Por que nossa sociedade teme tanto ultrapassar suas fronteiras? :::
MC – Essas sociedades são fundadas no medo. Temos hoje uma forma de governo que é administrar uma espécie de caos produzido pelo próprio sistema. Isso envolve sempre um aparato policial, policiamento das ideias, de anulação da criatividade, tudo feito em nome do medo, de uma ameaça que não sabemos bem o que é. Então, é preciso essa aceitação de que esse outro está dentro de nós.
Aqui no Brasil é uma coisa muito notória: 90% dos brasileiros nem sabem bem como se combinaram histórias, continentes, raças, dentro de si mesmos. E essa mestiçagem é o lugar certo: a aceitação profunda de que o outro existe dentro de nós. Em vez de a África ser procurada em África, provavelmente os brasileiros encontram a África fazendo essa viagem interior, em sua própria história.
::: Em seus textos, o senhor reafirma que “a Língua Portuguesa é um espaço de resistência”. E que, “na periferia, a palavra precisa lutar para não ser silêncio”. Em que medida escrever é uma forma de militância? :::
MC – Escrever em qualquer língua é sempre uma forma de militância. Escrever no sentido de fazer literatura, porque hoje há muito livro que se edita que não parece que seja exatamente literatura. E a militância existe em toda língua porque o que o escritor faz é dizer assim: “eu produzo pensamento, eu produzo arte”, num universo em que não se espera que as pessoas produzam desta maneira, como afirmação de sua própria interioridade. Espera-se que se consuma. E fazer isso em português, num mundo em que a língua inglesa é a língua global, é uma afirmação de diversidade quase subversiva.
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::: A sua escrita cheia de invenções, que mescla registros da fala popular de Moçambique, onde se falam 25 línguas, e também tem influência de escritores brasileiros: é muito celebrada. Como o senhor vê essa questão da linguagem? :::
MC – Isso tem de ser visto do ponto de vista de que Moçambique percebia que o português de Portugal servia, mas não bastava. Nós precisávamos introduzir nesse português uma marca de mudança, de identidade própria. É muito complicado fazer na Língua do outro uma afirmação de nós próprios. O Brasil ajudou muito, não só do ponto de vista literário. Antes de nós, vocês já tinham percorrido um processo, de autonomia, de fazer uma espécie de identidade brasileira dentro da Língua Portuguesa. Quando africanos de Língua Portuguesa tomaram contacto com a literatura brasileira, foi uma catarse, principalmente Jorge Amado. Foi uma espécie de caução literária. Meus grandes mestres estão aqui.
::: Seria uma espécie de retroalimentação? :::
MC – O Brasil é um grande produtor e exportador de Língua Portuguesa. E não só por causa da dimensão da população, mas também das novelas. Infelizmente, o livro não chega tanto, mas as novelas produzem grande influência. Eu recordo que fui uma vez a Tete [província na região central de Moçambique] — e a [companhia mineradora] Vale do Rio Doce tem uma grande presença por lá. Eu entrei no hotel e os empregados moçambicanos cumprimentavam-me com “Namastê, Namastê!” E eu não percebia o que era aquilo. Vim a saber mais tarde que havia uma novela, Caminho das Índias, e aquilo alterou a maneira de as pessoas se cumprimentarem, entre os próprios moçambicanos. :::
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• Confira na íntegra a entrevista do autor moçambicano Mia Couto à reportagem de Letícia Duarte no sítio do jornal Zero Hora, de Porto Alegre (Brasil).
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Com base em
DUARTE, Letícia. Mia Couto: “O grande crime do racismo é que anula, em nome da raça, o indivíduo”.
Extraído do jornal Zero Hora – Porto Alegre, Brasil.
Publicado em: 07 set. 2014.